sábado, 4 de julho de 2009

Ponto de vista ou de faro

Cada dia somos mais solicitados por outros, como se não bastassem nossas demandas pessoais. Amigos, namorados, filhos, pais, cônjuges. Professores, chefes, colegas. Por isso, nem sempre damos conta de fazer tudo que nos pedem. Às vezes precisamos “desobedecer” um pouco.

Eu, por exemplo, devia estar fazendo muitas outras coisas nesse momento. Não vou listar todas. Sentar aqui na frente do computador para escrever esse texto foi, até certo ponto, uma escolha pessoal (claro que assumi um compromisso, mas poderia fazer isso em outro momento). Apesar disso, há algo que deveria estar fazendo, mas não estou, por uma limitação pessoal, não por escolha própria.

As instruções que recebi foram: escrever sobre um cheiro de comida que remeta a alguma lembrança. Não dá. Claro que conheço vários cheiros deliciosos. Claro que tenho várias memórias. Mas não consigo fazer nenhuma relação entre as duas coisas. Quando fiz tal constatação, pensei: se quer ser escritora, precisa ser criativa. Portanto, invente. Também não deu. Resolvi desobedecer, se não o texto não sai. Vou mudar um pouco o tema.

Tem um cheiro que de vez em quando eu sinto e que me reconta várias histórias. Não é um cheiro muito especial em si. É até bastante comum, principalmente para pessoas que moram ali por perto. Mas é o que eu tenho.

Sabe a Cidade Universitária, ali na Ilha do Fundão? É um lugar banhado pela Baía de Guanabara, cheio de manguezais, com uma fauna riquíssima. Ou deveria ser. Não sei ao certo. O que sei é que aquela região tem um perfume um tanto particular e inevitável a todos que passam por ali, sejam quais forem seus destinos.

Doce ilusão é fechar os vidros e ligar o ar condicionado do carro – para aqueles que dirigem. O cheiro entra por frestas microscópicas e se instala dentro do carro. Pobres coitados são os que nem ao menos podem usufruir desta utopia odorífera proporcionada pelos vidros fechados. Viajam de ônibus e precisam optar entre o tão conhecido odor e o igualmente agradável calor.

Apesar das inconveniências dessas partículas malcheirosas que vagam pelo ar e adentram nossos sistemas olfativos, confesso ter certo prazer com o cheiro. Não que seja capaz de saboreá-lo, mas me traz muitas lembranças, algumas bastante agradáveis.

Minha avó paterna teve três filhos: meu pai e minhas duas tias. Antes mesmo de eu sonhar em nascer, a mais velha das mulheres se mudou para bem longe. Algo como 10.306 quilômetros. Quase nada. Junto foram o marido e os três filhos, ainda bem pequenos.

O resto da família ficou aqui, a ver navios (se fôssemos de São Paulo talvez tivéssemos ficado a ver aviões, como todo bom paulistano adora fazer). Mas, pra ser sincera, nem tanto assim. Não lembro a frequência das visitas que nos faziam, principalmente meus tios, quando eu era mais nova. Até porque meus avós às vezes revezavam com eles e iam desembarcar lá do outro lado do planeta. Sei apenas que aconteciam vez ou outra.

Em geral era meu pai quem buscava os tios no aeroporto. E lá ia eu junto com ele. Acordava mais cedo, parava o que estivesse fazendo ou cancelava um de meus compromissos de criança. Só para entrar no carro, ir até o aeroporto, ficar esperando algum tempo e depois voltar para casa. Só?! E o prazer dessas visitas?

Adorava rever os tios distantes. Ficava toda orgulhosa porque tinha família lá longe, num país que, na época, nem sabia dizer aonde era. Adorava ganhar chocolates, biscoitinhos de sopa (eu comia – e como – tal qual um pacote de salgadinho qualquer), pantufa, casaco. Qualquer coisa trazida pelos parentes queridos vindos de tão longe era bem vinda.

Além disso, havia também os jantares de família. Minha avó já começava a não ter forças para celebrar todos os feriados. Mas quando os tios estavam aí, não havia nem o que discutir: qualquer oportunidade que aparecesse era celebrada com um farto jantar, repleto dos pratos preferidos de cada um.

Ah, como eu adorava tudo isso!

Impossível reclamar do cheiro do mangue. O cheiro do caminho do aeroporto, que também cheirava a abraços, beijos, presentes, comidas, festa. Bem ou mal, cheirava a família.

Isabel Camargo Dain

sexta-feira, 3 de julho de 2009

Loteria da Vida

Foi notícia esta semana a queda de um avião bimotor em Trancoso, Bahia, no qual viajavam três gerações da família do empresário Roger Wright. Sendo o ocorrido já o suficientemente doloroso, essa tragédia chocou-me ainda mais ao saber que a fatalidade voltou a atingir essa família, uma vez que sua primeira esposa já havia perdido a vida em outro acidente aéreo, o trágico vôo 402 da TAM, em 1996.

Em momentos como esse, fantasio explicações para aplacar a tristeza que me abate e permitir ver algum sentido neste jogo da vida. Imagino haver nas mais longínquas alturas, bem próximo ao habitat dos serafins, uma Caixa Econômica Celeste, a CEC, onde se organizariam diferentes modalidades de sorteios diários. Um, em particular, se adapta à minha divagação : o da Mega Sina, responsavel por premiar os agraciados com a sina escolhida. Assim, nós humanos, ao nascermos, seríamos registrados num livro, digamos o livro da morte, e ganharíamos um número de inscrição. Àqueles desejosos em antecipar a volta ao reino dos céus, colocariam seus números de registro em uma grande urna localizada na matriz da CEC, indicando, ao mesmo tempo, numa ficha própria, a forma e o dia desejados para o retorno. Caberia à administração da CEC reunir em um grande banco de dados estas incrições, promover os sorteios e classificar os inscritos em grupos distintos. Consigo, assim, explicar, a razão para tantas mortes simultâneas recentes, tais como o do tufão Karina, o terremoto da Itália e tantas outras tragédias. Todos os que pereceram, o foram estritamente de acordo com suas escolhas, premiados pela Mega Sina. Sorteio, como o que originou o desaparecimento de 200.000 pessoas, no caso do tzunami na Indonésia, certamente ocorreu em semana com prêmio acumulado.

A partir destas divagações e em prol da minha estabilidade emocional passarei, a partir de agora, a encarar a vida não mais cheia de fatalidades. Aceitarei que hajam filas imensas à porta da fictícia CEC, exercendo cada individuo o seu direito de escolha. Procurarei eliminar o sentimento egoista que causava em mim muita tristeza, ao me permitir aceitar a escolha de cada um. Não mais sofrerei por doenças, sejam terminais ou não. Hospitais, nesta minha nova fase, serão meros spas. Guerras, brincadeiras de mocinho e bandido.

Sinto-me mais leve, após esta engendrada viagem pelo imponderável. Um dia, certamente, encontrarei os Wright no reino dos céus, a quem devo este maravilhoso “insight”. Espero, no entanto, que este encontro ainda demore algum tempo.

Confesso que devido ao meu gosto exacerbado pela vida fiz questão de perder o meu número de inscrição. Detesto jogos de azar.

Isaias Goldsmid

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Por água abaixo

Já são quase oito da noite e ainda não terminei a maquiagem! Tem que ser no capricho hoje. Contorno forte na boca, batom vermelhão, ah, e um olhar de mormaço, com muito delineador e rimel, para homem nenhum botar defeito. Vou estrear os cílios que ele me deu ontem. Vão fazer a diferença...

Afinal essa noite promete! Minhas sandálias prateadas com saltos dez, à Carmem Miranda, as meias arrastão. Uau, ótimo! Agora, um pouco de gel, e o topete fica seguro, no ponto certo. Mas minhas madeixas, vou deixar caírem como um véu negro, lisas, compridas, até a altura das axilas.

Que vestido vou escolher? – O vermelho, com brilho e frufru, ou aquele de oncinha, que tem o decote sensual até o busto? Ah, acho que este vai ficar perfeito! É curtinho, e a pelúcia disfarça minha magreza.

Agora um toque de perfume. O doce é o mais gostoso! Entre os seios, atrás das orelhas e nos pulsos. Hum, o cheiro vai enfeitiçar o gringo! Tenho certeza.

Espelho, espelho meu, há nesse mundo mulher mais charmosa do que eu? Bem, já dá pra apagar a luz do banheiro. Ah, não posso esquecer a minha bolsinha de lamê. Tá lá na mesa.

Nunca fiquei tão excitada! Pudera, com tanta promessa que o gringo fez ontem, quero mais é acreditar!

E esse elevador que não chega! Que saco! Ei! Solta a porta aí! Até que enfim! Agora é só essa geringonça chegar ao térreo. Treco velho, parece uma carroça! Não anda!

Meu Deus! Que temporal Este não tava no programa! Oh Seu Francisco! Essa água já ta aqui na portaria. O senhor não vai tomar uma providência? Isso aqui é edifício ou é barco?

Como é que eu não vi nem ouvi nada? Nem os raios, nem os trovões? Que estardalhaço dessa natureza! Tão tramando contra mim! Assim não pode ser. Meu encontro foi por água abaixo. Tem galho de árvore, lixo, rato. Tem de tudo! Carro parado, afogado, motorista abandonando o carro. Eu hein? Só pode ser pra buscar socorro. Ih, tem até correnteza! Cadê a rua? E a calçada? Sumiu tudo! Oh Seu Francisco! Oh Seu Francisco! Acode aqui!

E agora?

Lêda Maria

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Sorriso, desta vez eu vou ganhar...

Tardinha de sábado. Dia tranquilo, sol de outono, temperatura agradável.
Eu vinha com minha filha da praia, tínhamos tomado um suco, e minha filha ainda carregava o saquinho com pães de queijo.
Logo ao entrar, notei que ela não era lá muito simpática.
Sorri como de costume.
Tinha um ar blasé. Perguntou-me se eram duas passagens. Respondi que sim, ainda com um sorriso. Ela apertou automaticamente o botão e a maquininha escreveu: passe... Deu o troco, e eu e minha filha nos sentamos.
Desta vez não fui olhando o mar.
Reparei na trocadora, uma senhora.
A conversa me chamou a atenção.
Falava bem alto, como se não houvesse mais ninguém no ônibus.
- Ôoo Reinaldo, você sabia que na casa do Guilerme eles gastam um butijão de gás por mês? Não consigo entender como eles conseguem. Deve ter alguma coisa errada. Na casa do Guilerme é só ele mais a Soraya e a Tininha. Ele e a Soraya trabalham o dia todo e a Tininha quando chega da escola...
Um senhor, bem apessoado, interrompe para dar um “bom tarde de sábado de outono”; ela pega o cartão, de gratuidade da terceira idade, passa na maquininha e diz: - Pode passar. Passam mais três passageiros.
Uma mãe, com um recém-nascido no colo, vem pagar a passagem pela contramão. Ela olha para o bebê sem expressão, inclina-se de lado e roda a roleta.
Continua a conversa ainda intrigada com o botijão de gás do Guilerme:
- Lá em casa volta e meia eu faço bolo, até pudim e o meu botijão dura quase três meses.
Reinaldo, o motorista, sugere que talvez eles aqueçam a água do banho no fogão.
Os dois riem divertidos.
Reinaldo grita:- Entra por trás, por trás.
O rapaz entra e senta naquele banquinho onde se pode ler: “Fale ao motorista somente o indispensável”. E o “indispensável” como se ouve a seguir, é um falatório sem fim.
Ela se vê sozinha, não tem mais com quem jogar conversa fora.
O ônibus para no ponto onde está o fiscal e ela grita animada.
- Ôooo Sorriso, desta vez eu vou ganhar!
Grita abanando o papelzinho da loteria acumulada.
O rosto de Sorriso se ilumina.
A viagem recomeça.
Ela pega o telefone celular e tenta ligar. Entra um passageiro, ela desliga o celular e o põe no bolso, como se colocasse o maço de cigarros.
O passageiro passa.
O celular toca, ela combina e diz até lá.
Incomodada com o banco desconfortável, se ajeita.
Começa a contar...
Entra outro passageiro.
Sorriso automático ao “boa tarde de outono”.
O passageiro passa.
Recomeça a contar o dinheiro.
Abre a gaveta, guarda o dinheiro contado, tira uma bandejinha de isopor com uns pãezinhos, morde um...
Passageiro entra...
Guarda a bandejinha de isopor e...
Lambe escandalosamente os dedos, um a um. Lambe com prazer. Pai de todos, fura bolo, mata piolho...
Passageiro passa, sem resposta ao cumprimento.
Recomeça a comilança.
-Reinaldo, o pãozinho é ótimo!
Entre passageiros e lambidas, ela passa o resto do sábado de outono.
Seu mundo é Reinaldo, e claro, o lanchinho também.
Os passageiros passam.
Eu salto.
No dia seguinte confiro no jornal: Nenhum apostador acertou as seis dezenas.
Sábado que vem ela vai gritar com fé:
- Sorriso, desta vez eu vou ganhar!

Márcia Lopes

Sexta-feira treze ou a perua na tempestade

Sexta feira treze! Como não pensei nisso antes?
Acordei e tomei o café da manhã com toda a calma.
Depois olhei pela janela do apê para ver como estava o tempo: chovia muito. Precisava escolher uma roupa bem transada para causar boa impressão. Afinal não é sempre que pinta uma oportunidade dessas: fui chamada para uma seleção de modelos fotográficos numa agência chiquérrima!
Fiz a maquiagem, carregando um pouco mais no sombreado dos olhos e no rímel. Escolhi a blusa verde limão, de babados fartos sobre o decote. Evidenciava os seios que eu turbinei com silicone, e que ficaram divinos! Vesti a calça Versace que tinha uns bordados em metal nas costuras laterais: um luxo! Escolhi os brincos dourados, novinhos em folha (as pulseiras,várias, foram colocadas uma a uma, numa ordem específica). Calcei as botas de salto-agulha que fazem as pernas parecerem mais torneadas.
Desci dez andares de escadas porque tinha faltado a luz.
Na rua, o vento era de virar guarda chuva do avesso.
Tentei pegar um táxi: parecem evaporar quando chove! Os bueiros das ruas, sempre entupidos, não davam vazão à água que caía.Mas o nível da água começou a subir demais: não era possível que viesse só da chuva. Vinha da praia, e vinha com força. Fui até à rua transversal e consegui ver o mar.
Paralisada, vi que as ondas eram gigantescas. Nem a pior ressaca que eu já tivesse visto poderia se comparar àquilo.
As pessoas começaram a correr. Eu tentava manter a classe, mas o nível da água, subindo, já formava uma correnteza capaz de me jogar no chão, e me segurei num poste.
Minhas lindas botas estavam inundadas. O salto agulha ficava preso nos buracos das calçadas de pedra portuguesa, me fazendo cair algumas vezes. Meu cabelo foi se desmanchando, os babados da blusa perdiam volume, eu estava encharcada e com muito medo! A minha bolsa caríssima foi-se embora na correnteza.
Já não se via onde terminava a calçada e começava a rua: era um mar de águas cobrindo tudo, e os carros eram arrastados pela correnteza.
Entrei num prédio onde o porteiro já tinha dado no pé: a portaria estava alagada, a água ia até a minha cintura. Não adiantou: a porta interna que dava para as escadas estava trancada. Saí depressa, com medo de morrer afogada, o nível da água continuava subindo.
Comecei a nadar. Tinha gente em cima das árvores, gente gritando, cachorro nadando.
Passei perto de um galho e o agarrei com muita força. Consegui me sentar nele, como um macaco.
A correnteza ficava cada vez mais forte.
Em outros galhos da mesma árvore estavam dois homens e uma mulher, em perigo, como eu, sentindo o cheiro da morte.
Durou muito tempo essa tortura, até que água foi baixando e eu desci da árvore, devagar, me perguntando onde estava o meu mundo perfumado de cosméticos e roupas.
Desviando dos destroços, andei pelas ruas em ziguezague.
De esgueira, e espiando, a cara dura da realidade.
Angela Nabuco

A HORA E A VEZ DE A. M.

Não é a primeira vez que participo de um grupo em que se propõe que se liste os 10 melhores filmes, na opinião de cada um. Não é tampouco a primeira vez que omito na minha lista um filme que teve um papel fundamental na minha vida: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A omissão não é gratuita. Não se trata de desmerecer a beleza ou a importância do filme. A questão é que eu simplesmente não o assisti.
Estava eu fazendo dois meses de cursinho pré-vestibular (depois de muitos cálculos foi o que deu para pagar), e um colega começou a me paquerar: me dava carona após a aula, convidava para um chopinho e coisa e tal. Eu nunca tinha namorado, mas os hormônios adormecidos pelo intelecto se impuseram, e um dia acabei aceitando acompanhá-lo até o pequeno apartamento que improvisara, depois de um desentendimento com os pais, em Santa Teresa.
Era um rapaz razoavelmente rico, na minha avaliação, pois carro e apartamento eram sinais de uma vida bem diferente da minha. Nasci pobre, e minha mãe tinha uma série de preceitos que tínhamos de seguir por isso: tínhamos que ser honestos (“pobre vai para a cadeia, rico não”); trabalhar muito sem descuidar do estudo (“ter uma profissão, um emprego com estabilidade”); aliás, tirar sempre as notas mais altas (“rico não precisa, tem herança”); não ver tevê na casa dos outros (para não saberem que não tínhamos); não ler jornal (“tem muita coisa imprópria”) nem gibi, só livros; andar sempre arrumado (ela mesma varava a noite costurando, cerzindo, lavando e engomando as nossas roupas); falar direito (nem gíria, nem palavrão, nem apelido).
Havia ainda os preceitos específicos por sexo: meus irmãos não podiam nos bater, o que era ótimo: quando eu brigava com um, ele não podia revidar (“homem não bate em mulher, nem com uma rosa”); já as filhas mulheres (minha irmã e eu) não podiam ser “moças fáceis”, nem ficar pensando em namoro e casamento, pois “mulher não pode depender de homem, tem que ter uma carreira”. Assim, eu via minhas coleguinhas de ginásio trocando confidências e segredinhos, rindo maliciosamente, enquanto eu vivia mergulhada nos livros.
Eu tinha decidido enfim por uma profissão: ia estudar Sociologia. O motivo era tentar entender essa dicotomia entre ricos e pobres que matizava toda a minha vida, e que eu sabia que não era culpa nossa (afinal, fazíamos tudo certinho), nem de Deus (a essa altura não mais que uma sublime ausência). Achei que só podia ser uma questão social, e me dispus a decifrá-la.
Então ali estava eu , de repente, no apartamento do colega, que foi logo se pondo à vontade, tirando sapato, camisa, sentando no colchão que fazia as vezes de sofá e cama, cheio de almofadas, no chão. Ficamos conversando, ouvindo música, descobrindo muita coisa em comum, e eu também fui ficando à vontade. Logo estávamos nus, trocando mil carícias. Tudo muito natural e gostoso, eu enfim me tornando mulher.
Sabia que tinha cometido um pecado mortal, pelo menos para minha mãe; ele me deixou em casa (na esquina, pois também não se devia deixar ver que morávamos num prédio de conjugados), mas eu tinha perdido totalmente noção da hora. Minha mãe me esperava na portaria, e, ao me ver, mudou o ar de preocupação para reprovação. Perguntou onde eu estivera, respondi rapidamente, pedindo desculpas, que tinha ido ao cinema com algumas colegas. - Que filme? - ela perguntou, brava.
-“ A hora e a vez de Augusto Matraga” - foi o que me ocorreu; tinha ouvido alguém comentar sobre esse filme, e tinha certeza que mamãe não saberia o que era – não me lembro de tê-la visto ir ao cinema, mas mesmo que fosse, não seria para ver filmes nacionais, pois, segundo ela, “ antes era só pornografia, agora só mostram miséria” . Ela certamente assinaria em baixo a declaração, depois famosa, do Joãozinho Trinta, de que “pobre não gosta de miséria; quem gosta de miséria é intelectual”.
Já me deparei, depois, com anúncios desse filme em algumas mostras de cinema brasileiro, mas nunca quis assistir. Desconheço o diretor, os atores, o enredo. Minha impressão é que, se o vir, estrago o prazer da minha maior mentira. No meu imaginário, também recuperaria a virgindade, da qual custei tanto para me livrar.
Angela Tygel

Invisível: Um retrato anônimo

Em dias como este o movimento fica fraco por aqui. O dia mal clareou e o despertador acordou-me, lembrando de tudo que viria pela frente - a mesma rotina; velhos hábitos que nunca mudam, e logo vi que iria chover. Só não imaginei que choveria tanto, e, sem dar-me o luxo de ficar na cama, saí para o trabalho mesmo assim. Vivo em uma verdadeira selva: matar para não ser morto.
Trabalho praticamente vinte quatro horas. Ganho o suficiente, exceto em dias como esse. Chuva magnânima: cega, asssusta, maltrata. Braço direito da solidão, isso sim.
Meus clientes mais abastados e generosos desviam a atenção de nós - que somos mais invisíveis que cachorros pulguentos e molhados - e precisam atender os feridos, suicidas e boêmios, que aproveitam para usar a chuva como cenário da destruição. Esconder o feio com o bonito, a velha regra que faz o mundo girar.
Sou sempre a segunda opção: boneca sem sentimentos, queridinha do papai, aluna obediente. Devo seguir o roteiro e tenho infinitas possibilidades, exceto ser eu mesma. A chuva quer apagar o meu eu. Espero que consiga.
Escolhi o trabalho errado. Comecei achando que ser prostituta me faria ser gostada, amparada, visível. Como pude ser tão ingênua?
Hoje, especialmente, ando pelas ruas vazias, procurando qualquer ser vivo que me queira. Meu batom vermelho está borrado e grossas lágrimas de rímel escorrem pelo meu rosto. Não sei se são lágrimas, ou simplesmente chuva. Ao contrário desta tempestade, estou seca por dentro.
Ouço raios e trovões, mas é preciso ser indiferente, e continuar procurando. Preciso ser necessária em uma cama quentinha, preciso ser vista. O barulho não me assusta. Sendo bem sincera, a chuva que me molha mostra-me que ainda estou viva.
Queria deixar que a tempestade me levasse. Por mais que eu a deixe entrar em mim - o que é feito gentilmente, ao contrário de muitos machões com que saio - não consigo sentir-me limpa. Queria recuperar a inocência.
Meus pés não me obedecem mais. A chuva varreu minhas esperanças. Traiçoeira, limpou meu sustento e deixou o cheiro do pecado grudado em minha pele. A culpa transcorre em minhas veias, mas me é cômodo senti-la; é a única coisa que conheço.
Ensopada dos pés à cabeça, rezando para que um raio me atinja, ando à toa. Vultos me perseguem, demônios correm atrás de mim. Fogos-fátuos confundem minha sanidade. Grito; meus ecos escondem-se de mim. Estou sozinha.
Decido-me por voltar para casa e fazer o que faço melhor: ser invisível. Com chuva ou sem chuva.
Manuela (in memorian)