sexta-feira, 26 de junho de 2009

Por água abaixo

Já são quase oito da noite e ainda não terminei a maquiagem! Tem que ser no capricho hoje. Contorno forte na boca, batom vermelhão, ah, e um olhar de mormaço, com muito delineador e rimel, para homem nenhum botar defeito. Vou estrear os cílios que ele me deu ontem. Vão fazer a diferença...

Afinal essa noite promete! Minhas sandálias prateadas com saltos dez, à Carmem Miranda, as meias arrastão. Uau, ótimo! Agora, um pouco de gel, e o topete fica seguro, no ponto certo. Mas minhas madeixas, vou deixar caírem como um véu negro, lisas, compridas, até a altura das axilas.

Que vestido vou escolher? – O vermelho, com brilho e frufru, ou aquele de oncinha, que tem o decote sensual até o busto? Ah, acho que este vai ficar perfeito! É curtinho, e a pelúcia disfarça minha magreza.

Agora um toque de perfume. O doce é o mais gostoso! Entre os seios, atrás das orelhas e nos pulsos. Hum, o cheiro vai enfeitiçar o gringo! Tenho certeza.

Espelho, espelho meu, há nesse mundo mulher mais charmosa do que eu? Bem, já dá pra apagar a luz do banheiro. Ah, não posso esquecer a minha bolsinha de lamê. Tá lá na mesa.

Nunca fiquei tão excitada! Pudera, com tanta promessa que o gringo fez ontem, quero mais é acreditar!

E esse elevador que não chega! Que saco! Ei! Solta a porta aí! Até que enfim! Agora é só essa geringonça chegar ao térreo. Treco velho, parece uma carroça! Não anda!

Meu Deus! Que temporal Este não tava no programa! Oh Seu Francisco! Essa água já ta aqui na portaria. O senhor não vai tomar uma providência? Isso aqui é edifício ou é barco?

Como é que eu não vi nem ouvi nada? Nem os raios, nem os trovões? Que estardalhaço dessa natureza! Tão tramando contra mim! Assim não pode ser. Meu encontro foi por água abaixo. Tem galho de árvore, lixo, rato. Tem de tudo! Carro parado, afogado, motorista abandonando o carro. Eu hein? Só pode ser pra buscar socorro. Ih, tem até correnteza! Cadê a rua? E a calçada? Sumiu tudo! Oh Seu Francisco! Oh Seu Francisco! Acode aqui!

E agora?

Lêda Maria

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Sorriso, desta vez eu vou ganhar...

Tardinha de sábado. Dia tranquilo, sol de outono, temperatura agradável.
Eu vinha com minha filha da praia, tínhamos tomado um suco, e minha filha ainda carregava o saquinho com pães de queijo.
Logo ao entrar, notei que ela não era lá muito simpática.
Sorri como de costume.
Tinha um ar blasé. Perguntou-me se eram duas passagens. Respondi que sim, ainda com um sorriso. Ela apertou automaticamente o botão e a maquininha escreveu: passe... Deu o troco, e eu e minha filha nos sentamos.
Desta vez não fui olhando o mar.
Reparei na trocadora, uma senhora.
A conversa me chamou a atenção.
Falava bem alto, como se não houvesse mais ninguém no ônibus.
- Ôoo Reinaldo, você sabia que na casa do Guilerme eles gastam um butijão de gás por mês? Não consigo entender como eles conseguem. Deve ter alguma coisa errada. Na casa do Guilerme é só ele mais a Soraya e a Tininha. Ele e a Soraya trabalham o dia todo e a Tininha quando chega da escola...
Um senhor, bem apessoado, interrompe para dar um “bom tarde de sábado de outono”; ela pega o cartão, de gratuidade da terceira idade, passa na maquininha e diz: - Pode passar. Passam mais três passageiros.
Uma mãe, com um recém-nascido no colo, vem pagar a passagem pela contramão. Ela olha para o bebê sem expressão, inclina-se de lado e roda a roleta.
Continua a conversa ainda intrigada com o botijão de gás do Guilerme:
- Lá em casa volta e meia eu faço bolo, até pudim e o meu botijão dura quase três meses.
Reinaldo, o motorista, sugere que talvez eles aqueçam a água do banho no fogão.
Os dois riem divertidos.
Reinaldo grita:- Entra por trás, por trás.
O rapaz entra e senta naquele banquinho onde se pode ler: “Fale ao motorista somente o indispensável”. E o “indispensável” como se ouve a seguir, é um falatório sem fim.
Ela se vê sozinha, não tem mais com quem jogar conversa fora.
O ônibus para no ponto onde está o fiscal e ela grita animada.
- Ôooo Sorriso, desta vez eu vou ganhar!
Grita abanando o papelzinho da loteria acumulada.
O rosto de Sorriso se ilumina.
A viagem recomeça.
Ela pega o telefone celular e tenta ligar. Entra um passageiro, ela desliga o celular e o põe no bolso, como se colocasse o maço de cigarros.
O passageiro passa.
O celular toca, ela combina e diz até lá.
Incomodada com o banco desconfortável, se ajeita.
Começa a contar...
Entra outro passageiro.
Sorriso automático ao “boa tarde de outono”.
O passageiro passa.
Recomeça a contar o dinheiro.
Abre a gaveta, guarda o dinheiro contado, tira uma bandejinha de isopor com uns pãezinhos, morde um...
Passageiro entra...
Guarda a bandejinha de isopor e...
Lambe escandalosamente os dedos, um a um. Lambe com prazer. Pai de todos, fura bolo, mata piolho...
Passageiro passa, sem resposta ao cumprimento.
Recomeça a comilança.
-Reinaldo, o pãozinho é ótimo!
Entre passageiros e lambidas, ela passa o resto do sábado de outono.
Seu mundo é Reinaldo, e claro, o lanchinho também.
Os passageiros passam.
Eu salto.
No dia seguinte confiro no jornal: Nenhum apostador acertou as seis dezenas.
Sábado que vem ela vai gritar com fé:
- Sorriso, desta vez eu vou ganhar!

Márcia Lopes

Sexta-feira treze ou a perua na tempestade

Sexta feira treze! Como não pensei nisso antes?
Acordei e tomei o café da manhã com toda a calma.
Depois olhei pela janela do apê para ver como estava o tempo: chovia muito. Precisava escolher uma roupa bem transada para causar boa impressão. Afinal não é sempre que pinta uma oportunidade dessas: fui chamada para uma seleção de modelos fotográficos numa agência chiquérrima!
Fiz a maquiagem, carregando um pouco mais no sombreado dos olhos e no rímel. Escolhi a blusa verde limão, de babados fartos sobre o decote. Evidenciava os seios que eu turbinei com silicone, e que ficaram divinos! Vesti a calça Versace que tinha uns bordados em metal nas costuras laterais: um luxo! Escolhi os brincos dourados, novinhos em folha (as pulseiras,várias, foram colocadas uma a uma, numa ordem específica). Calcei as botas de salto-agulha que fazem as pernas parecerem mais torneadas.
Desci dez andares de escadas porque tinha faltado a luz.
Na rua, o vento era de virar guarda chuva do avesso.
Tentei pegar um táxi: parecem evaporar quando chove! Os bueiros das ruas, sempre entupidos, não davam vazão à água que caía.Mas o nível da água começou a subir demais: não era possível que viesse só da chuva. Vinha da praia, e vinha com força. Fui até à rua transversal e consegui ver o mar.
Paralisada, vi que as ondas eram gigantescas. Nem a pior ressaca que eu já tivesse visto poderia se comparar àquilo.
As pessoas começaram a correr. Eu tentava manter a classe, mas o nível da água, subindo, já formava uma correnteza capaz de me jogar no chão, e me segurei num poste.
Minhas lindas botas estavam inundadas. O salto agulha ficava preso nos buracos das calçadas de pedra portuguesa, me fazendo cair algumas vezes. Meu cabelo foi se desmanchando, os babados da blusa perdiam volume, eu estava encharcada e com muito medo! A minha bolsa caríssima foi-se embora na correnteza.
Já não se via onde terminava a calçada e começava a rua: era um mar de águas cobrindo tudo, e os carros eram arrastados pela correnteza.
Entrei num prédio onde o porteiro já tinha dado no pé: a portaria estava alagada, a água ia até a minha cintura. Não adiantou: a porta interna que dava para as escadas estava trancada. Saí depressa, com medo de morrer afogada, o nível da água continuava subindo.
Comecei a nadar. Tinha gente em cima das árvores, gente gritando, cachorro nadando.
Passei perto de um galho e o agarrei com muita força. Consegui me sentar nele, como um macaco.
A correnteza ficava cada vez mais forte.
Em outros galhos da mesma árvore estavam dois homens e uma mulher, em perigo, como eu, sentindo o cheiro da morte.
Durou muito tempo essa tortura, até que água foi baixando e eu desci da árvore, devagar, me perguntando onde estava o meu mundo perfumado de cosméticos e roupas.
Desviando dos destroços, andei pelas ruas em ziguezague.
De esgueira, e espiando, a cara dura da realidade.
Angela Nabuco

A HORA E A VEZ DE A. M.

Não é a primeira vez que participo de um grupo em que se propõe que se liste os 10 melhores filmes, na opinião de cada um. Não é tampouco a primeira vez que omito na minha lista um filme que teve um papel fundamental na minha vida: “A hora e a vez de Augusto Matraga”. A omissão não é gratuita. Não se trata de desmerecer a beleza ou a importância do filme. A questão é que eu simplesmente não o assisti.
Estava eu fazendo dois meses de cursinho pré-vestibular (depois de muitos cálculos foi o que deu para pagar), e um colega começou a me paquerar: me dava carona após a aula, convidava para um chopinho e coisa e tal. Eu nunca tinha namorado, mas os hormônios adormecidos pelo intelecto se impuseram, e um dia acabei aceitando acompanhá-lo até o pequeno apartamento que improvisara, depois de um desentendimento com os pais, em Santa Teresa.
Era um rapaz razoavelmente rico, na minha avaliação, pois carro e apartamento eram sinais de uma vida bem diferente da minha. Nasci pobre, e minha mãe tinha uma série de preceitos que tínhamos de seguir por isso: tínhamos que ser honestos (“pobre vai para a cadeia, rico não”); trabalhar muito sem descuidar do estudo (“ter uma profissão, um emprego com estabilidade”); aliás, tirar sempre as notas mais altas (“rico não precisa, tem herança”); não ver tevê na casa dos outros (para não saberem que não tínhamos); não ler jornal (“tem muita coisa imprópria”) nem gibi, só livros; andar sempre arrumado (ela mesma varava a noite costurando, cerzindo, lavando e engomando as nossas roupas); falar direito (nem gíria, nem palavrão, nem apelido).
Havia ainda os preceitos específicos por sexo: meus irmãos não podiam nos bater, o que era ótimo: quando eu brigava com um, ele não podia revidar (“homem não bate em mulher, nem com uma rosa”); já as filhas mulheres (minha irmã e eu) não podiam ser “moças fáceis”, nem ficar pensando em namoro e casamento, pois “mulher não pode depender de homem, tem que ter uma carreira”. Assim, eu via minhas coleguinhas de ginásio trocando confidências e segredinhos, rindo maliciosamente, enquanto eu vivia mergulhada nos livros.
Eu tinha decidido enfim por uma profissão: ia estudar Sociologia. O motivo era tentar entender essa dicotomia entre ricos e pobres que matizava toda a minha vida, e que eu sabia que não era culpa nossa (afinal, fazíamos tudo certinho), nem de Deus (a essa altura não mais que uma sublime ausência). Achei que só podia ser uma questão social, e me dispus a decifrá-la.
Então ali estava eu , de repente, no apartamento do colega, que foi logo se pondo à vontade, tirando sapato, camisa, sentando no colchão que fazia as vezes de sofá e cama, cheio de almofadas, no chão. Ficamos conversando, ouvindo música, descobrindo muita coisa em comum, e eu também fui ficando à vontade. Logo estávamos nus, trocando mil carícias. Tudo muito natural e gostoso, eu enfim me tornando mulher.
Sabia que tinha cometido um pecado mortal, pelo menos para minha mãe; ele me deixou em casa (na esquina, pois também não se devia deixar ver que morávamos num prédio de conjugados), mas eu tinha perdido totalmente noção da hora. Minha mãe me esperava na portaria, e, ao me ver, mudou o ar de preocupação para reprovação. Perguntou onde eu estivera, respondi rapidamente, pedindo desculpas, que tinha ido ao cinema com algumas colegas. - Que filme? - ela perguntou, brava.
-“ A hora e a vez de Augusto Matraga” - foi o que me ocorreu; tinha ouvido alguém comentar sobre esse filme, e tinha certeza que mamãe não saberia o que era – não me lembro de tê-la visto ir ao cinema, mas mesmo que fosse, não seria para ver filmes nacionais, pois, segundo ela, “ antes era só pornografia, agora só mostram miséria” . Ela certamente assinaria em baixo a declaração, depois famosa, do Joãozinho Trinta, de que “pobre não gosta de miséria; quem gosta de miséria é intelectual”.
Já me deparei, depois, com anúncios desse filme em algumas mostras de cinema brasileiro, mas nunca quis assistir. Desconheço o diretor, os atores, o enredo. Minha impressão é que, se o vir, estrago o prazer da minha maior mentira. No meu imaginário, também recuperaria a virgindade, da qual custei tanto para me livrar.
Angela Tygel

Invisível: Um retrato anônimo

Em dias como este o movimento fica fraco por aqui. O dia mal clareou e o despertador acordou-me, lembrando de tudo que viria pela frente - a mesma rotina; velhos hábitos que nunca mudam, e logo vi que iria chover. Só não imaginei que choveria tanto, e, sem dar-me o luxo de ficar na cama, saí para o trabalho mesmo assim. Vivo em uma verdadeira selva: matar para não ser morto.
Trabalho praticamente vinte quatro horas. Ganho o suficiente, exceto em dias como esse. Chuva magnânima: cega, asssusta, maltrata. Braço direito da solidão, isso sim.
Meus clientes mais abastados e generosos desviam a atenção de nós - que somos mais invisíveis que cachorros pulguentos e molhados - e precisam atender os feridos, suicidas e boêmios, que aproveitam para usar a chuva como cenário da destruição. Esconder o feio com o bonito, a velha regra que faz o mundo girar.
Sou sempre a segunda opção: boneca sem sentimentos, queridinha do papai, aluna obediente. Devo seguir o roteiro e tenho infinitas possibilidades, exceto ser eu mesma. A chuva quer apagar o meu eu. Espero que consiga.
Escolhi o trabalho errado. Comecei achando que ser prostituta me faria ser gostada, amparada, visível. Como pude ser tão ingênua?
Hoje, especialmente, ando pelas ruas vazias, procurando qualquer ser vivo que me queira. Meu batom vermelho está borrado e grossas lágrimas de rímel escorrem pelo meu rosto. Não sei se são lágrimas, ou simplesmente chuva. Ao contrário desta tempestade, estou seca por dentro.
Ouço raios e trovões, mas é preciso ser indiferente, e continuar procurando. Preciso ser necessária em uma cama quentinha, preciso ser vista. O barulho não me assusta. Sendo bem sincera, a chuva que me molha mostra-me que ainda estou viva.
Queria deixar que a tempestade me levasse. Por mais que eu a deixe entrar em mim - o que é feito gentilmente, ao contrário de muitos machões com que saio - não consigo sentir-me limpa. Queria recuperar a inocência.
Meus pés não me obedecem mais. A chuva varreu minhas esperanças. Traiçoeira, limpou meu sustento e deixou o cheiro do pecado grudado em minha pele. A culpa transcorre em minhas veias, mas me é cômodo senti-la; é a única coisa que conheço.
Ensopada dos pés à cabeça, rezando para que um raio me atinja, ando à toa. Vultos me perseguem, demônios correm atrás de mim. Fogos-fátuos confundem minha sanidade. Grito; meus ecos escondem-se de mim. Estou sozinha.
Decido-me por voltar para casa e fazer o que faço melhor: ser invisível. Com chuva ou sem chuva.
Manuela (in memorian)

segunda-feira, 22 de junho de 2009


Crônica de Rogério Menezes
publicada na coluna "O LOBO NO AR"


O ovo cada vez mais apunhalado


A pergunta era feita por minha mãe, à beira do fogão a lenha, aos quatro filhos que se sentavam para tomar o café de todas as manhãs em meados dos anos 1960, nos baixos grotões do interior da Bahia: - Querem hoje o ovo com a gema dura ou mole?

Meu irmão e minhas duas irmãs variavam as respostas – e nunca soube porque ontem desejariam gemas moles e hoje, gemas duras (e vice-versa). Eu, no entanto, invariavelmente, chovesse ou fizesse sol, sabia o que queria, e dizia, cheio de convicção:

- Mole, minha mãe, mole.

Mole, e nem precisava dizer, minha mãe sabia desse meu capricho (e o respeitava), a gema não podia ser quebrada, sequer rachada. Tinha de chegar à mesa, intocada, imaculada, cheia como lua cheia e naquele inolvidável tom forte de amarelo que a marcava. Cercava-a rija clara branca, sempre riscada-chamuscada em vários pontos por veias douradas provocadas pela fritura na manteiga quente.

Essa cobiçada gema-lua-cheia-amarelo-forte só poderia ser desmanchada por mim e a desmanchava com prazer: nela mergulhava chumaço de miolo de pão, que, devidamente empapado com aquela gosma sublime, era em seguida depositado na minha boca que, àquela altura do café da manhã, já salivava caudalosamente, amazonicamente.

Esse ovo-frito-por-minha-mãe foi certamente o meu mais remoto objeto de desejo gastronômico e, como já dizia o sapientíssimo Sigmund Freud, o primeiro objeto de desejo gastronômico (ou não) a gente nunca esquece. Mais: a gente nunca parará de desejá-lo.

Batata. Não deu outra. O mundo girou. A ema gemeu. A minha mãe morreu. A Bahia virou remota batucada. Tornei-me vetusto senhor que parece nunca querer se fixar em porto (seguro ou não) algum, seja cidade, pessoa ou idéia. Mas a paixão pelo ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga permanece incólume e, se depender de mim, perdurará até o fim dos (meus) tempos.

Claro, os ovos fritos que eventualmente devoro hoje em dia não têm esse capricho
materno – longe disso. Na correria desses tempos velozes, às vezes obrigo-me a ignorar a gema que se partiu assim que tocou o fundo negro da frigideira antiaderente. Ato contínuo: acabo perdendo a paciência e, heresia das heresias, misturo gema e clara em colheradas vigorosas e engulo aquela praga-do-café-da-manhã-de-todos-os-hotéis: os indefectíveis ovos mexidos.

Verdade que profetas diversos e perversos pipocam de todas as direções, todos ávidos em disparar vaticínios funestos. Todos absolutamente determinados a interromper esse affair gastronômico-amoroso entre mim e o ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. Uns advertem: ‘Cuidado, a gema (justo a amada e idolatrada gema?) aumenta o colesterol e entope as artérias e provoca infartos fulminantes.’ Outros acusam: ‘Suas calças não vão lhe caber mais se continuar comendo ovos fritos!’
Diante dessa algaravia macabra de alertas alarmistas finjo-me de morto. Homem experiente que sou, não posso, nem devo, ouvir esses tocadores de trombetas do apocalipse que assopram tragédias – embora esses tocadores de trombetas do apocalipse se reproduzam e se espalhem com a velocidade dos raios e dos tsunâmis. (Adoram listar alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos garantirão o paraíso. Adoram também listar, alimentos, situações e beberagens que, juram, nos farão sucumbir no fogo do inferno no próximo segundo).

Os itens dessas listas podem, a depender da força das marés e, principalmente, dos vorazes marqueteiros de milionários e gulosos grupos alimentícios internacionais, se intercambiar num piscar d’olhos. O ovo, por exemplo, foi redimido em rede nacional de tevê há alguns meses. O ovo, por exemplo, foi execrado (principalmente a minha adorável gema mole, agora acusada de hospedar salmonelas homicidas) em rede nacional de tevê na semana passada.

O ser humano adora brincar de controlar o incontrolável. Não será exatamente gema mole a mais ou a menos que adiará o inadiável. O que tiver de ser será, com ou sem o adorável ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga.

Carpe diem – antes que o fogo se apague, e, sabemos, todo o fogo se apagará algum dia.

Rio de Janeiro - 21/06/2009

quarta-feira, 17 de junho de 2009

Um certo visionarismo


As crônicas esportivas também fazem muito sucesso.
A primeira crônica de Nelson Rodrigues sobre Pelé.
Reparem na data e nas palavras do Nelson.
Santos 5x3 América, 25/02/1958
no Maracanã (estádio Mario Filho!!!).

Depois do jogo América x Santos, seria uma crime não fazer de Pelé o meu personagem da semana. Grande figura, que o meu confrade Albert Laurence chama de “o Domingos da Guia do ataque”. Examino a ficha de Pelé e tomo um susto: — dezessete anos! Há certas idades que são aberrantes, inverossímeis. Uma delas é a de Pelé. Eu, com mais de quarenta, custo a crer que alguém possa ter dezessete anos, jamais. Pois bem: — verdadeiro garoto, o meu personagem anda em campo com uma dessas autoridades irresistíveis e fatais. Dir-se-ia um rei, não sei se Lear, se imperador Jones, se etíope. Racionalmente perfeito, do seu peito parecem pender mantos invisíveis. Em suma: — Ponham-no em qualquer rancho e sua majestade dinástica há de ofuscar toda a corte em derredor.
O que nós chamamos de realeza é, acima de todo, um estado de alma. E Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável: — a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem enxota, quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento. E o meu personagem tem uma tal sensação de superioridade que não faz cerimônias. Já lhe perguntaram: — “Quem é o maior meia do mundo?”. Ele respondeu, com a ênfase das certeza eternas: — “Eu”. Insistiram: — “Qual é o maior ponta do mundo?”. E Pelé: — “Eu”. Em outro qualquer, esse desplante faria rir ou sorrir. Mas o fabuloso craque põe no que diz uma tal carga de convicção, que ninguém reage e todos passam a admitir que ele seja, realmente, o maior de todas as posições. Nas pontas, nas meias e no centro, há de ser o mesmo, isto é, o incomparável Pelé.
Vejam o que ele fez, outro dia, no já referido América x Santos. Enfiou, e quase sempre pelo esforço pessoal, quatro gols em Pompéia. Sozinho, liquidou a partida, liquidou o América, monopolizou o placar. Ao meu lado, um americano doente estrebuchava: — “Vá jogar bem assim no diabo que o carregue!”. De certa feita, foi até desmoralizante. Ainda no primeiro tempo, ele recebe o couro no meio do campo. Outro qualquer teria despachado. Pelé, não. Olha para frente e o caminho até o gol está entupido de adversários. Mas o homem resolve fazer tudo sozinho. Dribla o primeiro e o segundo. Vem-lhe ao encalço, ferozmente, o terceiro, que Pelé corta sensacionalmente. Numa palavra: — sem passar a ninguém e sem ajuda de ninguém, ele promoveu a destruição minuciosa e sádica da defesa rubra. Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: — a defesa estava indefesa. E, então, livre na área inimiga, Pelé achou que era demais driblar Pompéia e encaçapou de maneira genial e inapelável.
Ora, para fazer um gol assim não basta apenas o simples e puro futebol. É preciso algo mais, ou seja, essa plenitude de confiança, certeza, de otimismo, que faz de Pelé o craque imbatível. Quero crer que a sua maior virtude é, justamente, a imodéstia absoluta. Põe-se por cima de tudo e de todos. E acaba intimidando a própria bola, que vem aos seus pés com uma lambida docilidade de cadelinha. Hoje, até uma cambaxirra sabe que Pelé é imprescindível em qualquer escrete. Na Suécia, ele não tremerá de ninguém. Há de olhar os húngaros, os ingleses, os russos de alto a baixo. Não se inferiorizará diante de ninguém. E é dessa atitude viril e mesmo insolente que precisamos. Sim, amigos: — aposto minha cabeça como Pelé vai achar todos os nossos adversários uns pernas-de-pau.

terça-feira, 16 de junho de 2009

Elisabeth Bishop

UMA ARTE

A arte de perder não é nenhum mistério;
Tantas coisas contêm em si o acidente
de perdê-las, que perder não é nada sério.

Perca um pouquinho a cada dia.
Aceite, austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Depois perca mais rápido, com mais critério:lugares, nomes, a escala subsequente
da viagem não feita..
Nada disso é sério.

Perdi o relógio de mamãe.
Ah! e nem quero lembrar a perda de três casas excelentes.
A arte de perder não é nenhum mistério.

Perdi duas cidades lindas.
E um império que era meu, dois rios, e mais um continente.
Tenho saudade deles. Mas não é nada sério.

-Mesmo perder você (a voz, o riso etéreo
que eu amo) não muda nada.
Pois é evidente
que a arte de perder não chega a ser mistério
por muito que pareça (Escreve!) muito sério
Colaboração da Tygel.

Só um lembrete do Quintana...

A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando se vê, já é sexta-feira...Quando se vê, já terminou o ano...
Quando se vê, perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê já se passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado.
Se me fosse dado, um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando, pelo caminho, a casca dourada e inútil das horas.
Desta forma, eu digo: Não deixe de fazer algo que gosta, devido à falta de tempo,pois a única falta que terá, será desse tempo que infelizmente não voltará mais.
Mário Quintana (texto enviado pela "colaboradora LÊ")


sexta-feira, 5 de junho de 2009

O amor acaba (Paulo Mendes Campos)

O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Epígrafes da Oficina

01/04 – “O escritor que se recolhe e, antes de mais nada, empreende uma viagem para dentro de si mesmo haverá de encontrar a regra eterna da literatura: é preciso ter o talento de contar as próprias histórias como se fossem histórias dos outros, e contar as histórias dos outros como se fossem suas, porque é isso a literatura. Mas antes é preciso viajar pelas histórias e pelos livros dos outros.”Orham Pamuk, O Livro Negro

08/04 – “A verdade verdadeira é sempre inverossímil. Para tornar a verdade mais verossímil, precisamos necessariamente adicionar-lhe a mentira.” Stiepanóvitch, em Os Demônios, de Dostoievski.

15/04 – “Tudo é autobiográfico. Não há história que não seja confessional.” Amóz Oz, De Amor e Trevas
“Somos o que lembramos e, basicamente, o que não lembramos, ou não queremos lembrar.” Rogério Menezes (provavelmente)

22/04 – “A grande literatura não se dirige à nossa capacidade de julgamento, e sim à nossa capacidade de nos colocarmos no lugar do outro.”Orham Pamuk

29/04 – “Existe uma previdência especial até na queda de um pássaro.” Hamlet, em Hamlet, de Shakespeare “A fofoca é a prima pobre da grande literatura.”Amóz Oz

06/05 – “A vida é uma história contada por um idiota, cheia de som e fúria, e não significando nada." Macbeth, de Shakespeare

13/05 – “Meu pai dizia: se você rouba seu saber de um livro só, vai ser muito criticado, chamado de plagiador, ladrão literário. Mas se rouba de dez livros, já é considerado pesquisador e se de trinta, quarenta livros – um grande pesquisador.” Amóz Oz

20/05 – “O ponto de partida da verdadeira literatura é o homem que fecha a porta e se recolhe com seus livros.” Orham Pamuk, discurso prêmio Nobel

27/05 – “Nada pode ser mais espantoso que a vida, exceto a literatura.” Orham Pamuk, O Livro Negro
- “Quanto maior a sabedoria, maior o sofrimento; e quanto maior o conhecimento, maior o desgosto.” Eclesiastes