quinta-feira, 25 de junho de 2009

Invisível: Um retrato anônimo

Em dias como este o movimento fica fraco por aqui. O dia mal clareou e o despertador acordou-me, lembrando de tudo que viria pela frente - a mesma rotina; velhos hábitos que nunca mudam, e logo vi que iria chover. Só não imaginei que choveria tanto, e, sem dar-me o luxo de ficar na cama, saí para o trabalho mesmo assim. Vivo em uma verdadeira selva: matar para não ser morto.
Trabalho praticamente vinte quatro horas. Ganho o suficiente, exceto em dias como esse. Chuva magnânima: cega, asssusta, maltrata. Braço direito da solidão, isso sim.
Meus clientes mais abastados e generosos desviam a atenção de nós - que somos mais invisíveis que cachorros pulguentos e molhados - e precisam atender os feridos, suicidas e boêmios, que aproveitam para usar a chuva como cenário da destruição. Esconder o feio com o bonito, a velha regra que faz o mundo girar.
Sou sempre a segunda opção: boneca sem sentimentos, queridinha do papai, aluna obediente. Devo seguir o roteiro e tenho infinitas possibilidades, exceto ser eu mesma. A chuva quer apagar o meu eu. Espero que consiga.
Escolhi o trabalho errado. Comecei achando que ser prostituta me faria ser gostada, amparada, visível. Como pude ser tão ingênua?
Hoje, especialmente, ando pelas ruas vazias, procurando qualquer ser vivo que me queira. Meu batom vermelho está borrado e grossas lágrimas de rímel escorrem pelo meu rosto. Não sei se são lágrimas, ou simplesmente chuva. Ao contrário desta tempestade, estou seca por dentro.
Ouço raios e trovões, mas é preciso ser indiferente, e continuar procurando. Preciso ser necessária em uma cama quentinha, preciso ser vista. O barulho não me assusta. Sendo bem sincera, a chuva que me molha mostra-me que ainda estou viva.
Queria deixar que a tempestade me levasse. Por mais que eu a deixe entrar em mim - o que é feito gentilmente, ao contrário de muitos machões com que saio - não consigo sentir-me limpa. Queria recuperar a inocência.
Meus pés não me obedecem mais. A chuva varreu minhas esperanças. Traiçoeira, limpou meu sustento e deixou o cheiro do pecado grudado em minha pele. A culpa transcorre em minhas veias, mas me é cômodo senti-la; é a única coisa que conheço.
Ensopada dos pés à cabeça, rezando para que um raio me atinja, ando à toa. Vultos me perseguem, demônios correm atrás de mim. Fogos-fátuos confundem minha sanidade. Grito; meus ecos escondem-se de mim. Estou sozinha.
Decido-me por voltar para casa e fazer o que faço melhor: ser invisível. Com chuva ou sem chuva.
Manuela (in memorian)

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