segunda-feira, 25 de maio de 2009

Eu adoro esta!!!


Milho Cozido
Carlos Drummond de Andrade

A primeira vez que eu vi alguém na rua comer milho cozido, confesso que me espantei.A segunda, não estranhei tanto. A terceira, tive tentação de pedir-lhe:
– Desculpe, moça. Posso provar um tiquinho?
Porque era moça, por sinal bem-apanhada. Não pedi, infelizmente. Ou felizmente, porque
ela não só me recusaria o pedido como poderia mesmo estranhá-lo, achando-me atrevidão.
Refleti logo como havia entre nós a distância infinita de algumas gerações, pois ela fazia o
que eu gostaria de fazer e não tinha coragem, nem mesmo nunca pensara nisso: saborear na
rua uma tentadora espiga de milho verde.
E daí, quem sabe se toparia? Garota moderna, desinibida, comendo quando lhe apetecia,
natural que compreendesse o desejo de alguém, despertado da visão do milho bom de
comer. Se não topasse, a distância entre nós não seria tão grande assim: apenas moça
preconceituosa, incapaz de compreender que minha intenção era simplesmente provar do
milho, e não arranjar pretexto para aproximação, com fins obscuros e suspeitos.
Embaraçado, limitei-me a olhá-la com o rabo do olho, pois íamos no mesmo frescão, ela ao
meu lado, e era impossível não tomar conhecimento daquele pausado e delicado comer um
milho que vinha de antiqüíssimas fazendas da minha lembrança... um milho tão recuado,
tão perdido em brumas do século, sem mais nem menos viajando comigo naquele ônibus,
trincado pelos dentes da moça, que o comia com muita desenvoltura e ao mesmo tempo
com muita classe.
Ela, é claro, nem se dignava a tomar conhecimento de mim, com essa faculdade admirável
que têm as mulheres de estarem ausentes na mais indubitável presença. E dava uma
mordidinha e parava e recomeçava, atenta ao ritmo e às boas maneiras. Nada mais natural,
mais civilizado, sem provocação aos últimos defensores de que comer num coletivo é falta
grosseira de “berço”.
A espiga consumia-se. Eu sempre com vontade de provar, e mudo e quedo na minha
inibição. Não tinha olhos de cão pedinte, não ousaria tanto, mas comecei a duvidar da
inteligência e do coração da moça. Então ela não via que ao seu lado estava um senhor
carente e desejante de comer daquele milho, e que lhe custaria renunciar a uns poucos
grãos, para satisfazer tão humilde carência? Eu era um desconhecido, sim, mas o
desconhecido deixa de sê-lo a um rápido olhar de benevolência e duas ou três palavras
reveladoras.
Só em Botafogo me ocorreu que podia repugnar-lhe a idéia de a espiga passar por duas
bocas. Em Copacabana, perto de dois terços de espiga tinham-se desnudado; no Leblon
terminaria a refeição, pelo esgotamento da peça. Não pude deixar de admirar a competência
da moça, que nem se atrasava nem se afobava. Parecia até que cronometrara o ato de comer
pela duração da viagem de ônibus. Se morasse em São Conrado, destruiria duas espigas? O
fato é que degustava calma e delicadamente o glúten, o amido, as proteínas, ou, para falar
verdade,o sabor da mistura, sem identificação de elementos. O milho deixava-se papar,
talvez agradecendo a delicadeza com que era papado. Escapara do carrinho do vendedor
ambulante para cair nos dentes de uma bela moça egoísta que nem sequer se lembrava de
que pertinho dela um senhor de origens rurais passara a ter subitamente imperiosa
necessidade de comer milho verde, milho assado, milho cozido, qualquer variedade ou
modalidade de milho, e elas são milhares.
Ah, por que não fiz o que era tão fácil de fazer, passar na carrocinha e comprar a minha
espiga, mostrar à moça que também eu apreciava essa comidinha despretensiosa e amável?
Mas como, se eu não tinha, minutos antes, a menor tentação de comer milho, e só a sentira
ao ver a moça? Seria autêntica essa tentação, ou eu me comportava como reles imitador de
gestos alheios, sem correspondência com a massa dos meus gestos habituais, normalmente
programados? Na dúvida, arrisquei-me a olhá-la sem cerimônia, direto, quase provocador.
Não deu sinal de perceber minha indiscrição. Comendo estava, comendo continuou, na
mesma toada. E o milho acabando. E eu sentindo que a essa altura já não adiantava pedir
nada à moça. Na melhor hipótese me estenderia o sabugo despojado, com um ou dois grãos
de sobejo, irônicos. E já ia passando a minha vontade de comer aquele milho daquela
espiga, Deus (ou o Diabo) sabe lá por quê. Em vão procurara me iludir pensando num
milho anônimo, genérico, universal. Se a moça retirasse da bolsa outra espiga e a
oferecesse à minha gula, não me apeteceria. Aquela é que despertara em mim o desejo
manducativo, ligado a fortes e escondidas subjacências temporais. A moça desceu antes
de mim, depois de embrulhar cuidadosamente o sabugo em papel fino e guardá-lo na bolsa.
Continuei, já agora de estômago saciado. Eu comera toda a espiga de milho.

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