segunda-feira, 22 de junho de 2009


Crônica de Rogério Menezes
publicada na coluna "O LOBO NO AR"


O ovo cada vez mais apunhalado


A pergunta era feita por minha mãe, à beira do fogão a lenha, aos quatro filhos que se sentavam para tomar o café de todas as manhãs em meados dos anos 1960, nos baixos grotões do interior da Bahia: - Querem hoje o ovo com a gema dura ou mole?

Meu irmão e minhas duas irmãs variavam as respostas – e nunca soube porque ontem desejariam gemas moles e hoje, gemas duras (e vice-versa). Eu, no entanto, invariavelmente, chovesse ou fizesse sol, sabia o que queria, e dizia, cheio de convicção:

- Mole, minha mãe, mole.

Mole, e nem precisava dizer, minha mãe sabia desse meu capricho (e o respeitava), a gema não podia ser quebrada, sequer rachada. Tinha de chegar à mesa, intocada, imaculada, cheia como lua cheia e naquele inolvidável tom forte de amarelo que a marcava. Cercava-a rija clara branca, sempre riscada-chamuscada em vários pontos por veias douradas provocadas pela fritura na manteiga quente.

Essa cobiçada gema-lua-cheia-amarelo-forte só poderia ser desmanchada por mim e a desmanchava com prazer: nela mergulhava chumaço de miolo de pão, que, devidamente empapado com aquela gosma sublime, era em seguida depositado na minha boca que, àquela altura do café da manhã, já salivava caudalosamente, amazonicamente.

Esse ovo-frito-por-minha-mãe foi certamente o meu mais remoto objeto de desejo gastronômico e, como já dizia o sapientíssimo Sigmund Freud, o primeiro objeto de desejo gastronômico (ou não) a gente nunca esquece. Mais: a gente nunca parará de desejá-lo.

Batata. Não deu outra. O mundo girou. A ema gemeu. A minha mãe morreu. A Bahia virou remota batucada. Tornei-me vetusto senhor que parece nunca querer se fixar em porto (seguro ou não) algum, seja cidade, pessoa ou idéia. Mas a paixão pelo ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga permanece incólume e, se depender de mim, perdurará até o fim dos (meus) tempos.

Claro, os ovos fritos que eventualmente devoro hoje em dia não têm esse capricho
materno – longe disso. Na correria desses tempos velozes, às vezes obrigo-me a ignorar a gema que se partiu assim que tocou o fundo negro da frigideira antiaderente. Ato contínuo: acabo perdendo a paciência e, heresia das heresias, misturo gema e clara em colheradas vigorosas e engulo aquela praga-do-café-da-manhã-de-todos-os-hotéis: os indefectíveis ovos mexidos.

Verdade que profetas diversos e perversos pipocam de todas as direções, todos ávidos em disparar vaticínios funestos. Todos absolutamente determinados a interromper esse affair gastronômico-amoroso entre mim e o ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga. Uns advertem: ‘Cuidado, a gema (justo a amada e idolatrada gema?) aumenta o colesterol e entope as artérias e provoca infartos fulminantes.’ Outros acusam: ‘Suas calças não vão lhe caber mais se continuar comendo ovos fritos!’
Diante dessa algaravia macabra de alertas alarmistas finjo-me de morto. Homem experiente que sou, não posso, nem devo, ouvir esses tocadores de trombetas do apocalipse que assopram tragédias – embora esses tocadores de trombetas do apocalipse se reproduzam e se espalhem com a velocidade dos raios e dos tsunâmis. (Adoram listar alimentos, situações e beberagens variadas que, juram, nos garantirão o paraíso. Adoram também listar, alimentos, situações e beberagens que, juram, nos farão sucumbir no fogo do inferno no próximo segundo).

Os itens dessas listas podem, a depender da força das marés e, principalmente, dos vorazes marqueteiros de milionários e gulosos grupos alimentícios internacionais, se intercambiar num piscar d’olhos. O ovo, por exemplo, foi redimido em rede nacional de tevê há alguns meses. O ovo, por exemplo, foi execrado (principalmente a minha adorável gema mole, agora acusada de hospedar salmonelas homicidas) em rede nacional de tevê na semana passada.

O ser humano adora brincar de controlar o incontrolável. Não será exatamente gema mole a mais ou a menos que adiará o inadiável. O que tiver de ser será, com ou sem o adorável ovo-com-gema-mole-frito-na-manteiga.

Carpe diem – antes que o fogo se apague, e, sabemos, todo o fogo se apagará algum dia.

Rio de Janeiro - 21/06/2009

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